Tenho até hoje o link do anúncio nos meus “favoritos” do computador. Cliquei para reservá-lo, mas foi colocado, na minha cabeça, entre aqueles itens que você guarda pra ficar “babando” depois. Anunciava um veleiro americano, com bandeira brasileira, 47 pés, com tamanho de 50, reformado, com gerador, banheira (sim, meu barco tem uma banheira na suíte!!!!), e que tinha feito muitas viagens pelo Brasil, documentando a degradação ambiental. Tratava-se do famoso veleiro Mar Sem Fim.
Eu já estava meio ansioso pela compra de um veleiro. Mandei e-mail pedindo informações em vários anúncios. Liguei, conversei com gente que entendia muito de vela de cruzeiro. Optei por um catamarã. E lá fomos nós a São Luís do Maranhão, conhecer a indústria naval naquela região. Catamarãs são barcos incríveis, com muito espaço, seguros, muito confortáveis e lindos. Mas, naquele momento, não tinham nenhuma unidade disponível pronta entrega. Ou seja, teríamos que esperar uns 2 anos para começar nossa vida no mar. Confesso que voltei um pouco desanimado.
Procurei bastante pela internet, e fui apresentado a um veleiro Fast 410. Tinha boas referências deste modelo. Diziam que era um Ford Landau dos mares. Eu sempre gostei dos Galaxies e Landaus, então achei que seria um bom barco pra morar. Fomos visitar o barco em Ilhabela algumas vezes. Nos empolgamos com ele, as crianças passavam pelo Saco da Capela para vê-lo, já estavam chamando-o de “nossa casa”… Mas o verdadeiro dono estava em viagem, e sugerimos uma troca por um imóvel, o que estava em análise. Espera, espera, espera… No fim, o dono do barco disse “não”, e todos ficamos “re tristes”… (giria porteña: re bueno, re hermoso….)
Reiniciei a busca, que pela expectativa, havia sido deixada de lado. Fast 395, Fast 410, veleiro francês, motorsailer, Beneteau, Bavaria, Catamarã 41, barco na planta, Saco da Ribeira, Angra, Rio de Janeiro. Telefonemas, e-mails, chats noites adentro… Já estava saturado com a procura, e saltei para os meus “favoritos”. MORGAN 47, ketch (dois mastros), ar condicionado, gerador, dessalinizador, cozinha completa, suíte com banheira. Dono vende em razão de doença, preço fora das minhas possibilidades. Liguei.
– Rapaz, esse anúncio estava desativado… Eu tinha desistido de vender o barco, mas nesta semana vou reativar a venda. Tenho outras pessoas interessadas, mas se você depositar um sinal eu te vendo o barco, que está em Angra-RJ.
Peguei o número da conta e fiz o depósito.
-Ricardo, você depositou o sinal sem ver o barco, sem fazer uma avaliação completa do casco, do motor, das velas, do sistema de navegação,…..VOCÊ foi lá sentir o cheiro do barco??? Não ??? Desculpe , amigo, mas você enlouqueceu de vez……
Um mês depois do depósito do sinal, combinei a entrega com o vendedor e fui a Angra vê-lo. O barco não estava ruim, mas tinha muita coisa pra refazer. Era muito melhor do que minha imaginação calculou. Enorme!!!
Combinei com o vendedor que ele navegaria conosco até Ilhabela para aprender um pouco do barco. Antes disso, navegamos um “bate e volta” até a Vila do Abraão em Ilha Grande, numa noite estrelada. O barco aparentemente tinha condições de navegar, pelo menos a motor. De vela eu não entendia nada mesmo, deixaria a avaliação deste item para depois.
Passei minha primeira noite no barco, e ficava pensando… No dia seguinte eu faria o pagamento do restante do valor. Ainda dava pra desistir. Perderia o sinal, claro, mas me pouparia de um prejuízo muito maior.
Acordei e abri a entrada exclusiva que há na suíte. O sol bateu na minha cara. Lindo. Um bando de bem-te-vis fazia uma algazarra danada nas árvores da ilha ao lado. Sorri. Talvez se o dia amanhecesse nublado e com chuva, eu teria desistido do barco. Paguei o preço. Não tinha mais volta. O Barco era meu.
O pagamento foi feito no Rio de Janeiro. Voltando a Angra de carro, almocei com meu amigo Felipe Caranha, que me acompanhava. Era uma segunda-feira, e tínhamos marcado de sair de Angra na quarta, em direção a Ilhabela.
Na quarta-feira, esperei ansiosamente o agora ex-dono do barco, e nem sinal do indivíduo (aqui cumpre um esclarecimento: eu não comprei o veleiro do João Lara Mesquita, que já o havia vendido antes a outra pessoa…).
Na quinta, resolvi sair com o veleiro sozinho pela primeira vez. Liguei o motor e saí devagar, acelerando pouco. Depois ganhei confiança e resolvi colocá-lo no limite de rotação. Ele ganhou velocidade e… morreu. Tentei acionar o motor de novo e nada… Beleza, pensei… primeira saída, primeiro problema. Resumindo, voltamos rebocados por uma traineirinha de uns 5 metros. Na poita eu já pensava na “cagada” que tinha feito. Chamei um mecânico, que veio ao barco no mesmo dia e “sangrou” o motor. Na hora voltou a funcionar, e eu vi a operação de “sangramento”. Solta o parafuso da bomba injetora e se precisar solta também os terminais nos bicos injetores. Coisa simples, pensei. Acontece com qualquer barco.
O cara não aparecia. Ligava e dava caixa postal. Resolvi testar as velas. O vento estava bem fraco naquele dia. Prestei atenção nos cabos, este sobe, este amarra, aquele prende, e de repente estava velejando. Desliguei o motor, e incrível… O barco andava a vela. E tinha um monte de velas. Uma de enrolar na frente (depois descobri que se chamava genoa), a vela do mastro principal (a mestra, ou grande), e uma pequenininha do mastro de trás (a mezena…).
Na sexta-feira, tanto eu como o Felipe, já estávamos meio que querendo mandar um arpão na cabeça do cidadão. O Felipe Caranha é campeão brasileiro de pesca submarina e já pescamos bastante juntos. Inclusive, esperando o ex-dono do barco, acabamos pescando o dia todo em Angra. Às 13 horas, concluí que, com a grana na mão, as promessas de nos acompanhar a Ilhabela foram levadas pelo vento. Dinheiro na mão é vendaval.
Àquela altura da brincadeira eu já queria muito voltar pra casa (depois aprendi que ansiedade não é nada compatível com quem quer cruzeirar pelos mares…). Pensei: temos um bom barco, o motor voltou a funcionar, conseguimos velejar, estou manjando do GPS e sistema de navegação, o piloto automático está funcionando, estou com saudade da Helena e das crianças, o dia está lindo, e… quero muito ver esse bicho chegar em Ilhabela. Falei com o Caranha, e a resposta foi muito conclusiva:
-Cara, vamu prá casa , pelamordedeus…..
Resolvi encarar… Avisei os caseiros que estavam na Ilha e que olhavam o barco; desembarcamos algumas coisas que pertenciam ao ex-dono, soltei a poita e saímos em direção a Ponta da Joatinga. E liguei pra Helena…
Navegamos a motor até a saída da Baia de Angra, e achei melhor entrar pelo mar umas 3 milhas. Na saída do Mamanguá abri as velas, e ganhamos velocidade. A vela de proa era uma buja, e mesmo assim íamos a uns 5 nós.
Quando o barco saiu da Baia de Angra, o vento começou a apertar um pouco, mas era possível perceber que ele vinha pela aleta de bombordo. Você pode achar: o cara manja do babado… mas naquele dia, eu nem sabia o que era bombordo. Aleta de bombordo, pra mim era nome de peixe. Mas até que a coisa estava indo bem.
Já anoitecia quando o vento parou. As velas ficaram frouxas e resolvi ligar o motor. O bicho pegou na primeira e coloquei o barco no rumo de Ilhabela. Já estávamos bastante afastados da costa, e passava pela temida Ponta da Joatinga. Já tinha ouvido histórias de naufrágios naquela região, mas sabia que havia muita lenda também. Uma hora depois do motor ser acionado, de repente, ele morreu. Tento partir de novo, ele dá uma engasgada, e não pega. Agora a coisa começou a ficar boa… Estava a umas três milhas da Ponta da Joatinga, sem motor, e com o mar engrossando. Abri a sala de máquinas e olhei pro motor. Pensava, vou fazer a mesma coisa que o mecânico fez… vou sangrar o bicho. Procurei umas ferramentas nas gavetas e, com ajuda do Caranha abri o parafuso da bomba injetora e mandei ele bombear o diesel na tomada do tanque de combustível. Não vinha diesel…
-Cara, manda o diesel aí, gritei……
-Tô mandando, nega… só que a perinha não enche… tá colada…
Fui ver, e percebi que o tubo pescador do diesel estava obstruído. Peguei algumas ferramentas e desparafusei o suporte do pescador. Quando saiu, soprei no sentido contrário e o que vi me deu uma mistura de asco, medo, pavor e desespero. A coisa parecia um sanguessuga marrom, e comprida. Parecia uma lombriga marrom toda segmentada. Quase pensei que era um parasita e que a água do vaso sanitário estava invadindo o tanque de combustível. Olhei pro Caranha, que já xingava todas as gerações do ex-dono. Falava uns palavrões que até hoje eu não consegui achar em nenhum dicionário.
Então a situação era a seguinte: sem motor, vendo a Ponta da Joatinga chegar pelo GPS/PLOTTER, de noite, com um mar que já se mostrava mal-humorado, e vento fraco. Pensei, chegou minha hora. Morrer todo mundo vai, mas eu, além de morrer, vou naufragar um ícone da vela de cruzeiro do Brasil. Vai ser legal a manchete nos jornais de São Paulo e Rio: Maluco japonês naufraga o Mar Sem Fim na Ponta da Joatinga!!! Seria o fim da minha carreira de grande velejador, que tinha começado às 13 horas e teria a gloriosa duração até às 19 do mesmo dia.
Recoloquei o pescador e mandei o Caranha bombear o diesel. Ele gritou que agora estava conseguindo. O diesel chegou na bomba, sangrei e apertei tudo. Falei para ele subir no cockpit e dar a partida. O motor virou e senti que ia funcionar. Pegou até que fácil, e fiquei radiante. Só por cinco minutos, pois o bicho parou de novo. Tornei a sacar o pescador, e tirei outra lombriga.
Coloquei a cabeça pra funcionar e pensei comigo: Vou tirar uma amostra do combustível….Coloquei uma mangueira direto no tanque e, com a perinha tirei mais ou menos meio litro de diesel. Nem precisou muita análise: o diesel que colocamos em Angra estava todo contaminado, com uma espécie de borra marrom.
Falei pro Caranha: – Não adianta ficar tirando a lombriga e sangrando o motor. Desse jeito vamos fazer essa operação umas mil vezes e vamos chegar em Ilhabela daqui uns 20 dias, isso se a Joatinga não chegar antes.
Fui até a cozinha do barco e vi o que era possível usar para filtrar o diesel. Achei um filtro de café… Pensei: é muito fino, vai filtrar muito lentamente, o consumo do motor é muito maior. Achei um coador tipo peneira, e achei que ia passar muita lombriga e não ia filtrar. Bom, vamos ver como fazer. O Caranha perguntou: – Cara, você quer filtrar o diesel, mas como vai tirá-lo daí e voltar com ele para o tanque? Deve ter uns 300 litros aí dentro…
A Joatinga chegando perto. Pra piorar a situação, o vento apertou muito. Podíamos levantar as velas e sair velejando, mas minha ignorância e medo começavam a fazer efeito, e pela intensidade do vento achei melhor não navegar a vela. Tinha que me concentrar no motor. O veleiro balançava muito e vi uns galões de 20 litros de água que estavam a bordo. Peguei um deles, esvaziei a água na pia da cozinha, fiz um furo na parte de cima. Cortei o fundo de uma garrafa pet de Coca-Cola, coloquei na boca do galão, coloquei a peneirinha no funil e comecei a bombear o diesel com a perinha. Vinha um óleo sujo, com muita contaminação, mas a peneirinha até que segurava muita borra. Enfiei o pescador no furo que havia feito e tirei uns dez litros de diesel ”filtrado”. Sangrei de novo a bomba injetora e dei a partida… O motor roncou e engatei a marcha avante, deixando pra trás a Ponta da Joatinga.
Passamos a noite toda bombeando diesel com a perinha e filtrando o diesel “in-loco”. Revezava com o Caranha no filtro, e quando estava num nível aceitável, um dos dois cochilava um pouco, mas logo era acordado pelo que estava de vigia, às vezes aos gritos: bombeia essa bagaça, p…!!!!
As 4 horas da manhã entrávamos pelo canal de Ilhabela. Jogamos o ferro na primeira praia que achamos segura, liguei pra Helena e fomos dormir exaustos. O AmarSemFim tinha chegado em sua nova casa.
Veleiros são máquinas muito antigas. Foram usados como meio de transporte, comunicação, carga. Também serviram à exploração de novos continentes, novas terras, novo mundo. São veículos rústicos, simples e confiáveis. Movem-se pelo vento, essa força misteriosa que não se vê nem muito menos se controla. Muitos propósitos foram realizados através de veleiros. Dizem que histórias de veleiros são muito saborosas, pois transmitem uma sensação de liberdade, de poder mover-se a qualquer lado do mundo através dos oceanos.
Eu não comprei o veleiro. Ele não me pertence. Entrou na minha vida para servir a um propósito único: moldar-me. Mostrar-me que nada neste mundo pode ser feito para satisfazer o coração humano. Coisas humanas são sujeitas a todo tipo de deterioração, e o veleiro já navegou por todo o Brasil vendo essa degradação. O homem escolhe o consumismo, o distanciamento entre sí, o desequilíbrio, a ganância. Busca uma segurança pessoal, algo que o isole das preocupações e que lhe dê paz.
O AmarSemFim é a proteção da minha família. É a paz. É abrigo. É liberdade. É segurança. É forte. Me acolhe quando estou com medo. Me dá solução quando preciso. Me molda. Mas principalmente, me enche de satisfação. O AmarSemFim é o meu propósito de vida. O AmarSemFim é infinito.
Já o veleiro… bom, ele é um carinho que “O AmarSemFim” resolveu me fazer……..

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